O prazer de sentar-se para uma refeição é único, um dos melhores rituais da vida. Trata-se de um momento em que você faz uma pausa e satisfaz os sentidos, principalmente o olfato e o paladar. Mas não é só isso. Este momento pode tornar-se agradável também para a visão, que se encanta com um prato bem finalizado, aquele que salta aos olhos. O chamado empratamento, ou mesmo food design.
Segundo Emmanuel Bassoleil, chef francês radicado no Brasil há mais de três décadas e com sua carreira atrelada ao crescimento da gastronomia no país, o empratamento é uma evolução da Nouvelle Cuisine, que surgiu em meados da década de 70 na França.
Evolução da Nouvelle Cuisine
A Nouvelle Cuisine trouxe inovações desde novas maneiras de cortar os alimentos, assim como a atenção aos pontos de cozimento para preservar os traços naturais. A ideia era trazer à mesa comidas com menor teor de gordura e mais saudáveis. Os chefs começaram a fazer uso de ervas e de legumes com mais frequência, e diminuíram as porções servidas, evitando dessa forma a cultura do excesso. A decoração se tornou um item obrigatório nos pratos.
Muitos conceitos estéticos da Nouvelle cuisine foram inspirados na maneira oriental, sobretudo japonesa, de servir a comida. Sempre buscando o respeito às formas naturais, à limpeza, à clareza e à elegância, além da valorização do ingrediente e simplicidade. Dessa forma, o empratamento surgiu como uma evolução natural deste formato, tornando o ato de comer um conjunto de sensações elaboradas.
O empratamento não deve se sobrepor ao sabor
“O visual é muito importante, o famoso comer com os olhos se aplica aos pratos preparados com uma apresentação geralmente autoral do chef. Contudo o que não pode acontecer é o empratamento se sobrepor ao sabor”, enfatiza Emmanuel. “Não adianta ter um visual lindo, mas o prato chegar frio, quando teria que ser quente, pelo tempo que se levou para o empratamento, ou o gelado esquentar, por exemplo”.
Para Emmanuel, tudo o que vai no prato tem que ser comestível. Não dá pra ter nada destoando no sabor. Ele cita o exemplo de um prato lindo com uma pasta azul que tem um sabor ruim pois foi pensado somente para decorar, e que acaba destruindo todo o trabalho do chef. “O cliente vai se lembrar do sabor, não do visual, essa é a grande experiência que você tem que apresentar no prato. O gosto precisa estar incrível”, enfatiza.
Empratamento em eventos: priorizar 4 movimentos
Por ter grande experiência com empratamento para eventos, Emmanuel explica que a receita não pode ser sofisticada. “Um dos requisitos para eventos é a agilidade. O mise en place precisa estar pronto para facilitar o trabalho. Em um evento para 500 pessoas, por exemplo, precisamos pensar em receitas com apenas 4 movimentos”, explica. “É como uma linha de montagem, onde 4 pessoas diferentes fazem o movimento, sendo a guarnição, a proteína, o molho e por fim a última pessoa que vai finalizar a decoração e deixar o prato perfeito”.
Em um evento grande é preciso que o prato esteja pronto no tempo certo, para que chegue na temperatura ideal para o consumo. Isso torna o trabalho um verdadeiro desafio. Por este motivo, a escolha das louças é de extrema importância.
“Eu procuro trabalhar com louças diferentes. Utilizo uma cerâmica que mantém o calor do prato. Dessa forma, mesmo demorando um pouco entre o empratamento e a entrega pelo garçom, eu vou ter a segurança de que a comida vai chegar quente para o consumo”, finaliza Emmanuel.
A palavra do momento é EXPERENCIAR
“Os clientes hoje estão buscando mais do que apenas sentar e comer. Eles querem experenciar“, ressalta Thiago Chiericatti, chef que trabalha com food design. Ele já trabalhou na Itália e em vários restaurantes de renome. Presta consultorias e dá cursos no segmento de culinária, além de ter participado do reality The Taste Brasil (GNT). “Isso é muito legal porque a gente conseguiu ter mais tempo. Claro, tirando a hora do almoço que é mais corrido e servimos pratos mais rápidos, no jantar o que o cliente quer é obter experiências”, conta ele.
Para Thiago os cardápios de hoje são bem mais simples, com menos pratos, o que facilita também o trabalho. E se o mise en place estiver pronto, a dinâmica costuma ser bem rápida. “Tem alguns pratos que demoram mais, mas nos cursos que eu dou, coloco um cronômetro e o aluno tem que montar tudo em no máximo 3 minutos. Seja um prato simples, médio ou complexo”, esclarece.
As cores, os sabores e as texturas
Thiago explica que no food design a combinação de cores é essencial. “É preciso usar a paleta de cores, para ter um trabalho mais harmônico. Eu gosto do preto e branco. Utilizo pratos pretos e embora fique sofisticado, para a fotografia é um desafio”, conta.
Segundo Thiago, no início da sua carreira já se inspirou bastante em artistas de fora, hoje criou seu próprio estilo. Mas tem algumas receitas clássicas que ele não gosta de trabalhar com empratamento. “Acho que pratos como o frango com quiabo, a moqueca, o tacacá, são pratos que fazem parte da nossa história. Para mim soa desrespeitoso fazer atualização, pois já estamos acostumados com eles da forma como são”.
Para o chef, o sabor e a beleza estão no mesmo nível. “A estética do prato é importante, tanto quanto o sabor da comida. Eu encaro a louça como uma tela em branco e ali eu faço a minha arte, sempre buscando formas diferentes, uma geometria com contrastes. Penso na textura e claro, no sabor que precisa ser umami, ou seja, impressionar de verdade”, conclui.
Quando criança não tinha opções de comidas diferentes
Elói Leite é chef de cozinha no Palácio Guanabara e no Palácio das Laranjeiras, no Rio. Ele conta que o empratamento é o que ele ama fazer, para deixar seus pratos mais atraentes. “Comecei a cozinhar muito novo, vim de uma família muito, muito pobre, dessa forma nem sempre tinha opção de comidas diferentes”, relata ele. “O cheiro da comida do vizinho me despertava uma vontade insaciável de ver, tocar e comer. Assim surgiu o meu interesse pela gastronomia”, explica.
Segundo Elói, o empratamento é feito baseado em suas memórias afetivas, de acordo com o ambiente que o inspira, o alimento ou até mesmo seu sentimento naquela hora. “Costumo usar uma frase que diz que acabamento é tudo. Assim, uma boa execução na mistura de aroma, cor, sabor e acabamento, não tem como dar errado”.
Regra do relógio
Existem algumas regrinhas que ajudam bastante quem ainda não tem muita prática com o empratamento, como por exemplo a técnica do relógio. As proteínas e os vegetais devem ser distribuídos no prato usando a analogia do relógio. Basta imaginar que o prato é um relógio e distribuir as proteínas entre 3 e 9 horas, os carboidratos entre 9 e 11 horas e os vegetais entre 11 e 3 horas. Dessa forma fica tudo harmônico, depois é só usar a criatividade para finalizar.
De acordo com Elói, quando se fala em cozinha afetiva, o próprio preparo vira um destaque. “Dificilmente uma feijoada, uma rabada, um mocotó, um baião de dois, um frango com quiabo ou até mesmo um arroz caldoso não vão ficar bonitos na foto e muito apetitosos”, conta. Para ele, o alimento é para satisfazer, para saciar, para chegar ao extremo do umami. “Podemos comer de olhos fechados algo com sabor e aroma incrível e enxergar algo que não estamos vendo, mas nunca vamos conseguir enxergar algo sem cor, aroma e sabor”, completa.
Empratamento de sobremesa aguça a visão e atiça o paladar
A chef Mariana Corrêa atua em confeitaria francesa da La Parisserie, trabalha com sobremesa, que por si só já é um prato desejado. Imagina ele decorado: é uma iguaria para hipnotizar. “A diferença do empratamento de uma sobremesa está mais na porção, mas os conceitos são os mesmos”, explica. Para ela, a ideia é sempre valorizar os ingredientes utilizados na receita.
Segundo Mariana, sazonalidade e procedência dos elementos são fatores essenciais para o seu trabalho. Quando elabora uma nova sobremesa, os itens da estação sempre são levados em consideração. “Gosto de levar frescor nas minhas apresentações”, frisa. Já a inspiração, segundo ela, pode vir de qualquer lugar, sem muita regra. As vezes é um tema que gostaria de trabalhar, ou um sabor que chamou sua atenção. “Pode vir de ideias antigas, ou mesmo de lugares inesperados como uma obra de arte, um livro, uma experiência”, destaca ela.
“A textura da sobremesa é muito importante. Líquida, cremosa, sólida, com calda“. Isso, explica Mariana, determina a louça, por exemplo. Para ela é preciso considerar as várias texturas e cores para que seu trabalho seja bem acabado. Alimentos gelados, como sorvetes, serão adicionados no final, contudo as caldas, o melhor é servir na mesa para dar um toque a mais.
Nem todo elemento tem que aparecer
O formato da louça depende muito do que será servido. Se a louça vai ser mais funda, mais rasa, pequena ou reta. A textura da louça também é muito importante, uma porcelana é diferente de uma cerâmica, assim como de um utensílio esmaltado. Se a peça tem ranhuras ou detalhes em relevo, tudo isso influencia a experiência final. “Se você tiver atenção a estes detalhes, vai elevar esta experiência do cliente, contudo também pode ser o contrário. Um exemplo é um sorvete servido em pratos de ardósia, ou cerâmica crua, quando passamos a colher chega a dar arrepios. É muito desagradável”.
Mariana explica que gosta de pensar em camadas de sabor e de textura, e como isso vai chegar na boca do cliente, se vai levar toda a experiência que ela pensou. Ás vezes, nem todo elemento tem que aparecer, isso até ajuda a causar boas surpresas na hora da degustação. “Gosto de pensar em formas que dêem mais altura. A sobremesa, para mim, tem que ter um ar de leveza. É preciso chamar a atenção de forma sutil, e só de olhar, aguçar todos os sentidos”, finaliza.
O design do empratamento é feito primeiro no papel
Já André Amorim é chef e trabalha com identidade visual de restaurantes, tendo inclusive menus de casas de renome com a sua assinatura. Toda vez que ele monta um cardápio, faz o empratamento, sempre buscando harmonia entre o sabor e a beleza da receita.
Ele explica que a partir de um briefing (informações do cliente para a execução do trabalho) são definido os materiais a serem usados no projeto. “O formato da louça, seja um prato redondo ou quadrado, mais rústico, as cores, textura e profundidade são todas definidas a partir deste briefing. Dessa forma eu já tenho uma base para trabalhar, assim vou montando as ideias primeiro no papel, depois transferindo para a prática”, conta ele.
Cores fortes e vibrantes são mais chamativas
É preciso sempre buscar um equilíbrio entre os alimentos servidos no prato. A ideia é centralizar ou opor os itens simétricos ou assimétricos. Outro detalhe que não pode ser esquecido é com relação ao fluxo, assim, é interessante colocar os itens em formato de uma linha a ser seguida com os olhos. Contudo eles precisam ter unidade, ou seja, formar uma “única coisa” e não várias separadas.
O ponto focal deve ser de preferência o item principal do prato. É para lá que os olhos vão se voltar com naturalidade, assim é importante também pensar na cor que traz unidade. Cores fortes e vibrantes são mais chamativas, mas é preciso evitar o excesso. Contudo no empratamento deve ter pelo menos um elemento de cor viva, pois o prato se torna alegre.
Empratamento é um trabalho artístico
A altura do prato dá volume e consistência, dessa forma o ideal é colocar alguns componentes de pé. Itens decorativos como ervas, por exemplo, levam a um ótimo efeito visual, mas devem ser usados com moderação. É Importante que o prato não fique cheio, assim as porções devem respeitar o tamanho da louça para sobrar espaço em branco.
Para André, o importante são as referências. Pesquisar tendências mundiais, assim como ter um bom planejamento, antes de colocar a mão na massa. Além disso, ficar atento aos detalhes e não fugir do projeto inicial, para que os pratos tenham uma identidade visual que conversam entre si, ou seja, um estilo próprio. “Empratamento é mais um trabalho artístico, então é difícil seguir regras, mas elas ajudam. Tudo depende da mensagem que queremos passar com aquele prato, e o sabor que queremos imprimir na experiência do cliente”.
A importância da fotografia
As redes sociais são grandes aliadas do empratamento. Basta acessarmos o Instagram para encontrarmos montagens lindas, e isso vem crescendo cada vez mais. Dessa forma, a fotografia é importante para que o empratamento tenha esse sucesso todo. Isabella de Brito Maiolino mora em São Paulo, é fotógrafa, atua com foto de comida e dá aulas de como fazer fotos de pratos usando o celular.
“Tudo começou com o meu blog, eu sempre fotografava as comidas dos restaurantes que eu frequentava. Depois comecei também a cozinhar e fazer produções fotográficas em casa. Peguei gosto. Então, desde 2016 trabalho de forma profissional com fotografia de comida”, conta ela.
Isabella explica que existe um profissional chamado food Stilyst, que fica responsável em deixar o prato super apetitoso, como por exemplo, tornar a comida com um aspecto suculento, colorido, para sair bonita na foto. “Parece fácil mas é um trabalho bem técnico. Muitas vezes eles utilizam até ferramentas de dentistas, como pinças e pegadores, ou de construção civil tais como soprador térmico, que faz o chocolate parecer brilhante e apetitoso”, conta.
Quem não tem uma boa vitrine não vende
Segundo Isabella, tem muitos truques que ela ensina no seu curso. “Com um celular e uma boa luz natural você pode ganhar o mundo! O curso foi pensado para pessoas que não têm tempo a perder: você aprende tudo em uma hora”, enfatiza. “Claro que tem o fator criatividade, que com o tempo você vai treinando. Hoje em dia, quem não tem uma boa vitrine não vende. E a vitrine se chama foto boa no Instagram”.
A textura também é fundamental na fotografia com alimentos. Quanto mais textura, mais rica fica a imagem. Como exemplo, Isabella cita um prato de cerâmica com massa. “Você insere um guardanapo de linho ao lado, coloca uma tábua de madeira como base, uma colher de ferro antiga com queijo parmesão ralado e tem várias texturas na cena”, explica Isabella. As cores, segundo ela, deixa por conta da imaginação. “Um galho de manjericão, um prato azul, um guardanapo bege, uma madeira marrom antiga e você tem um ambiente rústico”, pontua.
O céu é o limite
Isabella esclarece que a luz e o enquadramento precisam se adequar ao prato. “Um hambúrguer por exemplo, é melhor visto no ângulo frontal com uma luz vinda de lado. Já uma bebida, um ângulo vindo um pouquinho de baixo e uma luz vinda de trás na contraluz vai deixar o drink com um brilho fantástico”, ensina. Para ela, é preciso somente uma boa luz que venha da janela, um alimento que esteja bonito, fresco, apetitoso, assim como muitas ideias na mente. “O céu é o limite”.
Nunca se fotografaram tantos pratos como nos dias de hoje. E um dos grandes destaques tem sido a decoração, que tem elevado tanto a apresentação dos pratos como o sabor a um novo patamar. Se você se sentiu inspirado, aproveite, faça sua receita, decore e conte como foi nos comentários.