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Comfort Food: a comida que remete à infância

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As tardes de domingo no interior visitando a avó eram os momentos mais felizes na infância da manicure Júlia dos Santos Prior, que mora em Gravataí – RS. O cheiro do pão quentinho assado na hora, saía da cozinha e chegava até os cantos mais distantes da casa da avó, dona Marli, que caprichava na receita e no tamanho da travessa. O mais importante era que as crianças estivessem felizes, o que para ela significava bem alimentados. Mas, mais do que isso, Dona Marli colocava muito amor em tudo que cozinhava. “As comidas que mais me remetem à infância são polenta com molho de carne moída, sopa de feijão e o pão feito no fogão a lenha, com um ingrediente especial, o amor da minha vó espalhado na receita”, conta.

Julia Prior e a avó
Julia Prior e a avó Dona Marli

Julia acredita que como sua vó morou a vida toda no interior (Barra do Rio Azul), e por se dedicar inteiramente à criação dos filhos e ao marido, a cozinha era para ela a extensão desta dedicação. Descendentes de italianos, a família reunida em volta da mesa sempre foi prioridade.

“Meus pais se divorciaram, fiquei morando um tempo com minha mãe, depois fui morar com meu pai. Há pouco tempo minha avó veio morar com a gente. Isso trouxe de volta toda aquela alegria da infância nos pratos mais simples. Comida de vó já é boa, e vó que sempre morou no interior é melhor ainda. Com a pandemia, era de se imaginar que minha vó iria engordar todo mundo. Só eu já estou com pelo menos uns 15 quilos a mais” brinca ela.

Comida afetiva, emoções do passado

Aquela sensação de conforto, um sentimento que sempre brotou com o cheirinho do pão caseiro saindo do forno, mesmo quando Julia não estava na casa da avó, chama-se COMFORT FOOD, ou seja, comida afetiva, uma tendência no mercado gastronômico que visa aproximar o consumidor de sensações que trazem de volta emoções do passado.

O conceito é novo, mas a essência dele é super antiga”, explica Luisa Haddad, 35 anos, bióloga e co-fundadora do Pé de Feijão, um projeto de impacto social, que promove a conexão dos alimentos através de hortas urbanas. “Essa tendência é exatamente por não termos isso no nosso dia a dia, esse mundo que estamos vivendo, onde ninguém tem tempo, ir para a cozinha é um privilégio, um luxo. A maioria das pessoas dos grandes centros, por exemplo, passam horas em transportes coletivos. Não sobra tempo para muita coisa”.

Projeto pé de feijão

Luisa Haddad comida de afeto comfort food
Luisa Haddad

De acordo com Luisa, seu objetivo com o projeto é resgatar esta conexão com a alimentação. Muito do que ela faz está ligado com a intimidade do ingrediente. E busca restabelecer um laço de confiança de que a pessoa é realmente capaz de plantar e cozinhar a sua comida. “Precisamos trazer esta memória afetiva para estimular as pessoas a iniciar sua horta em casa”, esclarece. “Restabelecendo este vínculo com a comida, e a confiança de que todo mundo é capaz, o dia a dia vai ser muito mais prazeroso”.

A ideia é não deixar que as receitas de família se percam. Luisa conta que a sua motivação vem de uma história pessoal. Perdeu sua mãe muito cedo e muitas receitas da família se foram com ela. “Eu fui atrás das minhas tias e escrevi um livro de receita com todas as variações de pessoa para pessoa”. Ela explica que é de uma família árabe, então sua vó tinha a receita original do tempero da coalhada, por exemplo. E cada tia mudou um pouquinho, dessa forma a receita se diversificou. Uma faz a coalhada mais mole, outra mais seca e Luisa buscou exatamente manter estas nuances familiares, para que esta intimidade com a cozinha, estas comidas que para ela são afetivas,  permanecessem e fossem passadas de geração para geração.

Plantar a própria comida, por que não?

Luisa Haddad comida afetiva

E Luisa vai além, para ela não é só a comida que traz este conceito de comfort food. Ela acredita que todo o processo, desde o plantio faz parte da comida afetiva. “Se joguem na experiência de plantar a própria comida, ver a horta se desenvolver, se permitir experimentar coisas diferentes”, incentiva ela. “Plantar uma batata doce e descobrir que as folhas são comestíveis, e talvez neste processo você se lembre que comia isso na sua infância. Ou aparece uma mato que você não plantou, você vai ver e é caruru ou serralha. Aí você lembra que são folhas que a sua vó colhia e servia para a família, algo muito presente na sua infância”.

Ela fala também da conexão com plantas medicinais, e principalmente dos chás. “Plantar chás antigamente era muito comum, assim, guaco, poejo, erva-cidreira eram plantas presentes em todos os quintais, preparados naturalmente e não nos saquinhos”, esclarece.

Quando você planta, colhe e faz o chá, em sua memória surgem várias lembranças, por exemplo, do cuidado de quando você estava doente e sua mãe trazia uma xícara fumegante daquele chá. São plantas que trazem aquele gostinho da infância”.

Para ela, com a pandemia se tornou mais corriqueiro cozinhar em casa, mas ainda assim não é o cozinhar com calma, as pessoas estão ainda sem tempo. Quem está trabalhando em home office tem reuniões seguidas. O ato de fazer a comida não é aquele momento de prazer, mas sim de correria.

Uma viagem no túnel do tempo

“A ideia da horta no quintal vem para trazer este momento de tranquilidade. Quem está cozinhando de forma automática, vai até a horta, pega o ingrediente, passa a mão, dessa forma o aroma exala e a mente viaja”

“Essa pessoa vai lembrar que a mãe tinha aquele tempero quando ela era criança, vai recordar das macarronadas de domingo, da família reunida, e isso resgata toda aquela conectividade que se tinha com o alimento lá atrás”, explica.

Segundo Luisa, o que fica na memória é o processo de quando você ia na horta colher o ingrediente, ou quando a sua família preparava juntos a receita na cozinha ou colocavam a mesa. Estes rituais marcam muito. “Se você fechar seus olhos, e puxar pela memória os momentos felizes que você teve com sua família, provavelmente eles estão ligados com o fazer, com esse envolvimento que hoje estamos perdendo com a terceirização da nossa alimentação”, explica.

 “As crianças de hoje quando adultas vão ter o que de memória? Duvido que vão se lembrar do ifood que a gente pediu”, finaliza Luisa.

Criando memórias afetivas: comfort food

“Acho que o movimento para deixar para os filhos e netos a memória afetiva é a comida“, afirma Mônica Rangel, chef que comanda o Restaurante Gosto com Gosto desde 1994, em Visconde de Mauá no Rio de Janeiro. Ela conta que em casa sempre colocou seu filho e agora as duas netas, Ana com 9 anos e Lia com 4, para participar do cozinhar, para que elas tenham esta vontade de experimentar e se envolvam em todo o processo.

Monica e as netas comfort food
Mônica Rangel e as netas Ana e Lia
Ana e Lia comida afetiva
Ana e Lia colhendo na horta

A memória gastronômica fica com a gente a vida toda. Pra vocês terem uma ideia, o melhor frango com quiabo que eu já comi foi o da minha mãe, e ela já morreu há mais de 20 anos, contudo toda vez que eu faço ou como este prato, lembro nitidamente dela”, conta.

Todo o trabalho de Mônica no restaurante Gosto com Gosto é baseado na sua memória afetiva. Então, os pratos são todos comfort food, relacionados à cozinha mineira, como ela foi criada. O maior elogio, segundo ela, é alguém dizer que a sua comida está muito parecida com a da mãe, da avó, da tia. “Não precisa nem dizer que está melhor, se falar que está parecida eu já fico muito feliz”, brinca ela.


Comfort food faz você se sentir abraçado, acolhido e amado

Mônica explica que tudo que você come, bebe ou toca e isso te lembra da infância, ou das reuniões de família, é a sua memória afetiva, algo que te traz conforto. “O Comfort food diz respeito à comida, mas tem também a bebida, e o conforto em todos os momentos onde você se sente abraçado, acolhido e amado“, esclarece.

Monica Rangel na horta
Mônica Rangel em sua horta orgânica

A horta é outro ícone na vida de Mônica, que sempre despertou sua memória afetiva. Ela conta que quando morou em Juiz de Fora, MG, sempre estava junto com a avó na horta.

“Minha avó sempre deixou a gente participar com ela deste momento, plantando, vendo a mudinha crescer, colhendo e cozinhando. A couve tinha folhas enormes, de um verde escuro que me encantava. Eu amava participar de todo o processo, mexer na terra“, relembra.

“O conforto da alma é algo que imprimo muito no restaurante. Todas as hortaliças, como por exemplo a couve, a ora-pro-nobis, a salsa, a cebolinha e várias outras coisas saem da minha horta”, explica. “Claro que eu não faço nada sozinha, tenho pessoas fundamentais em cada área, mas eu amo participar de todo este movimento da terra para o prato, que eu trouxe lá detrás, do convívio com a minha avó e que fez tanta diferença na minha vida”, finaliza.

Bebida com gostinho de infância

Quando se fala em comida de afeto, todo mundo pensa naquelas comidinhas de mãe, tia, avó, irmã mais velha, contudo não é só isso. O chef de cozinha e empreendedor, Alef Nay, 28 anos, morador de Contagem – MG entende que o ambiente, a música e até as bebidas fazem parte do comfort food, pois trazem aconchego e ótimas lembranças. Para Alef, a limonada é um grande exemplo. No cardápio do seu restaurante, ele serve limonada como era feito na casa da sua vó, e depois na casa da sua mãe. Uma bebida que para ele tem “gostinho de infância” e traz muitas histórias e memórias associadas a ela.

Alef e sua mãe no restaurante
Pilão da Avó de Alef comfort food
Pilão da Avó de Alef

Quando Alef montou o seu restaurante, que se chama Alpendre Comfort Food, pensou em todos os detalhes para deixá-lo alinhado à sua essência, que é a comida afetiva, então trouxe para o ambiente muita coisa da casa da sua avó. As arandelas de varanda de alpendre antigas, as janelas de madeira colonial e até o pilão vieram dela. Segundo ele, seus avós fazem farinha de amendoim todos os anos na páscoa, raspam rapadura, forram o amendoim e socam tudo em um pilão. “É um evento de família até hoje. Este da foto é o pilão que está aqui no restaurante, foi difícil convencer minha vó, mas consegui, muita gente olha e traz sua própria história relacionada ao objeto, é muito bacana”, conta.

Pratos esmaltados, pilão e objetos antigos (comfort food)

comfort food
Comida caseira servida em pratos esmaltados, uma viagem ao passado

Além disso, Alef diz que serve as refeições em pratos esmaltados. As pessoas também associam estes itens de cozinha com algo que viveram lá no passado. Dessa forma, a decoração, os pratos e talheres, junto com a comida afetiva, como por exemplo a feijoada que é o carro chefe, a couve puxada no alho e o frango com quiabo, tudo isso forma um conjunto de comfort food que faz as pessoas viajarem ao passado, a momentos felizes da infância ou da juventude.

Comfort food está em alta e a tendência é crescer ainda mais pois com a tecnologia e as correrias do dia a dia, estamos muito carentes de afeto”, afirma. “Dessa forma, buscamos suprir essa carência através de lugares que nos remetem a um momento especial na nossa vida, bom atendimento e aquela comidinha que nos deixam com uma sensação de prazer e relaxamento emocional”, explica.

Dessa forma, todos os aspectos da alimentação, desde a escolha, a ocasião, a companhia, até a degustação, sem falar no início do processo, que envolve a plantação, a colheita e preparo fazem parte desta roda viva que é o comfort food, ou seja, a comida afetiva. Um conceito que cresce a cada dia nos restaurantes, bares e até nos churrascos de família.


E você, tem alguma comida que traz ótimas lembranças? Conte pra gente nos comentários. Enquanto isso, acesse nosso site e conheça nossa linha de produtos.

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